nos subúrbios do Rio
subia e descia ladeiras
andava nos trens da Central
frequentava as praias
da Barra, do Recreio
e Ilha do governador
de ônibus, ia e vinha
mãos dadas com quem me levava
Cascadura, Madureira, Méier
Piedade, Abolição, Pilares
esses bairros me são familiares
ficam na Zona Norte
pra lá do túnel
avesso da cidade maravilhosa
os meninos da minha rua soltavam pipa
jogavam bolinhas-de-gude e finca
as meninas pulavam corda, jogavam amarelinha
ioiô e bambolê eram brinquedos da moda
II
pelo rádio, um certo baiano
dizia que o sol nas bancas de revista
o enchia de alegria e preguiça
uma história pra contar
de um mundo tão distante"
outro baiano
de nome igual ao da tia Gil
mandava aquele abraço pro Realengo
e toda torcida do Flamengo
anunciva que o Expresso 222
partia direito de Bonsucesso
pra depois do ano dois mil
ouvia-se também um carioca
que era de Holanda
cantando Carolina
"nos seus olhos fundos"
guardava tanta dor
"a dor de todo este mundo"
os festivais eram da canção
e o músico baiano
de cabelos encaracolados
cantava "é proibido proibir"
já outro, capixaba
depois virou rei
cantava "é proibido fumar"
tinha um calhambeque que fazia “bi bi”
e se dizia um negro gato de arrepiar
um lobo-mau, ele era o tal
III
naquele tempo, descobri
morava num país tropical
abençoado por Deus
do alto do morro
de braços abertos
vigiava a cidade
cheia de encantos mil
como a nega chamada Tereza
igualzinha a Zeni
quando limpava o alto da geladeira
onde havia um pingüim
depois que o velho guerreiro
balançava a pança, buzinava a moça
e dava ordens no terreiro
assistia ao Topo-Gigio cantando
VI
em fevereiro, tinha carnaval
confete, serpentina, lança-perfume
pierrot e colômbina
em junho, os balões subiam
carregados de desejos
ao caírem, traziam mistérios
quem sabe Deus
eram noites de São João
ao pé da fogueira
comia batata-doce e brilhava
vestida de caipira
lábios vermelhos
pintados de batom
em setembro, ganhava doces
de São Cosme e São Damião
adorava maria-mole e doce-de-abóbora
em forma de coração
V
na minha terra
mexerica era tangerina
mandioca, aipim
o feijão era preto
o arroz, brejeiro
e o doce, pudim
o português da quitanda, além de batatas
vendia pão chamado bisnaga
e leite em garrafa
na rua, havia feira
e no fim do dia
só havia sujeira
VI
falava a língua do “P”
tomava grapete-repete
além de biscoito de nata
minha tia fazia pavê
detestava gemada
ovomaltine e gualhada
adorava ovo frito
com bife e purê
fazia bolinhas de sabão
e passava Karo no pão
lia o gibi do Bolinha
e tomava sorvete Kibon
o maiô era duas-peças
a cueca, samba-canção
o leite, Glória
e a manteiga, Claybom
a tv, preto e branco
o som, vitrola
de conga eu ia pra escola
os brinquedos, Estrela
a geléia, de mocotó
a confeitaria, Colombo
o perfume
alfazema
e o arco
diadema
o dente caía
banhado de ouro
enfeitava o pescoço
a Barbi era Susi, eu tinha a Pupi
tão pequenininha
na palma da mão se escondia
igual ao biquíni de bolinha amarelinha
mal cabia na minha irmã
Ana Maria
VII
nasci na Freguesia do Irajá
morei em Rocha Miranda
minha mãe trabalhou no Catete
meu pai foi servente, papiloscopista
depois virou crente
tinha uma avó Santa e outra Nenzinha
um avô Gonçalo, morto de barriga d’água
e outro, Jorge, medalheiro
filho único de pai estrangeiro
minhas tias eram prendadas
sabiam cozinhar e costurar
minha mãe, aplicada
além de estudar e trabalhar
sabia bordar, crochetear
e se pintar
meu tio
tinha um “fuca”
meu primo
um violão
minha irmã
amava os Beattles
e os Rollings Stones
minha avó Santa
reumatismo
e arteriosclerose
minha prima, namoradeira
ia ao Cine Bruni, aos bailes do clube
vestida de tubinho e meia-arrastão
o pai dela, meu outro tio
era descendente de alemão
falava igual ao Barney
do desenho da televisão
o irmão dela, meu outro primo
tinha autorama e patinete
e fazia aviõezinhos com perfeição
VIII
nas tardes modorrentas
o radinho de pilha chiava
e o meu tio, vascaíno
o juiz xingava
os dias eram felizes
aos domingos, comíamos lasanha
em dias de Paixão, bacalhoada
no Natal, rabanadas
um dia fiquei doente
tive tosse-de-cachorro
tomei xarope e chorei
minha mãe partira
havia de trabalhar numa cidade nova
no Planalto Central
bem longe dali
do subúrbio,dos morros
do mar e de mim
IX
tempos depois
eu e minha irmã
de malas prontas
embarcamos no ônibus
Itapemirim era a viação
Brasília, o destino no letreiro selado
e o Rio, ali, no terminal
aos poucos foi sendo deixado
da janela, a cidade agora emoldurada
e, nela refletida, uma garotinha a lhe acenar
e a me dizer adeus
via a cidade
a cidade não me via
ocupada com sua gente
de volta pra casa
enquanto dela partia
ao som das lojas cerrando as portas
a cidade nada sabia
surda, a mim perdia
luzes corriam o céu e sumiam
como somem os cometas
levando consigo o meu passado-menino
pelos ares densos da terra que o mar encontra
os dias suados
a areia da praia no tapete do carro
o meu corpo salgado
recortes da cidade descolavam da retina
sugados pelo buraco negro
perdiam-se nos becos da Via-Láctea
e em série o Rio apagava
um caledoscópio sem luz nem cor
teve forma em seu lugar
colado em minha memória
um mosaico branco foi
adormeci
rumo à solidão das terras altas
aonde vim acordar, mais perto do sol
mil metros acima do mar
2011